Um simples relato
Bem, por onde posso começar? Acho
que vou ser clichê e contar a vocês em ordem cronológica os fatos que se
sucederam comigo.
Meu nome? Isso não é importante, os
acontecimentos é que são importantes. Basta a vocês saberem que sou um homem na
casa dos trinta anos, bem de vida e com vários amigos. Ah, e claro que apesar
de não ser nenhum Tom Cruise, tenho meu charme. Vamos aos fatos.
Se bem me lembro, eu estava em meu
apartamento cozinhando macarrão para comer com molho de tomate e carne moída
naquela noite. Tinha comprado um vinho tinto e moído a carne na hora. Coloquei
o macarrão na panela para cozinhar quando meu celular tocou, era uma amiga um
tanto quanto intima, se é que vocês me entendem.
- Oi meu amor! –
falei assim que atendi.
- Oi! Preciso de
sua ajuda! – a voz dela passava uma certa aflição. – Posso ir ai agora?
Eu estranhei a pergunta, pois ela
simplesmente chegava sem avisar sempre que queria curtir uma boa noite a dois
comigo.
- Claro que
pode, minha flor. – eu parei por alguns segundos – Mas, o que foi que
aconteceu?
- Quando chegar
ai eu te conto. Querido, acho que estou muito encrencada.
- Calma! Venha
logo pra cá.
Ela se despediu e desligou o
telefone. E eu fiquei com uma curiosidade enorme. O que minha amante casual
tinha feito, será que tinha matado alguém? Se envolvido com algum homem casado
e a esposa traída estava em busca de vingança? As piores hipóteses passavam por
minha mente, mas, nenhuma delas chegaria perto do que realmente estava
acontecendo.
Quando a comida já estava pronta e o
vinho já aberto. A campainha tocou, abri a porta e tomei um susto ao vê-la com
cabelos desgrenhados, maquiagem borrada e olhos vermelhos.
Assim que me viu, jogou-se em meus
braços aos prantos e soluçando.
- Eu tô morta,
eu tô morta...
A coloquei para dentro e fechei a
porta do apartamento a fim de evitar vizinhos curiosos. Sentei-a no sofá e fui
buscar uma taça de vinho para ela que tomou tudo de um só gole.
- Agora se
acalme e me conte o que está acontecendo. – falei com uma calma anormal.
- É culpa disso
aqui, tudo é culpa disso aqui! – ela gritou jogando um medalhão antigo no chão.
Abaixe-me e peguei a peça que era de
prata antiga e tinha a imagem em alto relevo de dois dragões se enroscando,
formando um círculo enquanto um devorava a cauda do outro.
- Isto aqui é a
causa de seus problemas?! – olhei indignado para ela – Você roubou isso de
quem?!
Ela me olhou sem entender direito a
pergunta que tinha sido feita. Me ajoelhei diante dela e refiz a pergunta bem
calmo.
- Eu não roubei
de ninguém! – ela respondeu entre lágrimas – Minha tinha morreu, e em seu
testamento ela me deixou isso. Ela devia me odiar muito!
- Por quê? É uma
jóia linda!
- Você tem que
acreditar em mim, no que vou te contar!
- Claro meu
amor. – disse complacente - Agora conte tudo.
Ela respirou fundo e enxugou as
lágrimas que escorriam pelo rosto.
- Quando recebi
isso. – ela apontou para o medalhão em minhas mãos – Achei lindo, mas, em menos
de três dias minha virou um inferno. Passei a ouvir passos e risos dentro de
casa e na rua via vultos de coisas horríveis.
Ela parou e me pediu mais vinho. Eu
trouxe a garrafa inteira para ela, que tomou logo um gole farto.
- Eu pensava que
era só impressão minha, mas, hoje apareceram essas inscrições. – ela pegou o
medalhão e mostrou-me a parte de trás. Lá estava inscrito de forma clara e
legível.
“ Os pecados do
sangue serão pagos com sangue.”
- Que pecados
são esses? – perguntei curioso e com um certo receio.
- Não sei! – ela
tinha voltado a chorar .
Eu a abracei com carinho e beijei
seus lábios para acalmá-la. Ela retribuiu o beijo e me afastou com delicadeza.
- Depois que a
inscrição apareceu, eu tive certeza que não era impressão minha. Os vultos que
eu via na rua estavam atrás de mim. –
ela tomou outro gole – Quando me olhei no espelho hoje, vi que por trás de mim havia
um velho com olhos e boca costurados tentando me abraçar.
Enquanto ela falava lágrimas
escorriam pelo seu rosto e de repente ela gritou assustada apontando para trás
de mim. Virei-me rapidamente e mesmo que alguns instantes, pude ver uma criança
nua, sem sexo definido com olhos e boca costurados. Minha amiga agarrou-se ao
meu pescoço soluçando.
- Não deixa eles
me machucarem, não deixa!
Eu não sabia o que dizer. Segurei-a
pelo braço e corremos para a porta. Ao tentar girar a maçaneta percebi que
estava trancada e não importava a força que colocasse, não abria.
Os risos começaram, primeiro
infantis, inocentes, depois de velhas risonhas e maldosas. Minha amante sentou
no chão encostada na porta e gritava por socorro. Pelos cantos da sala e pelo
corredor eu via vultos disformes correndo de um lado para o outro.
Os risos aumentaram e com os eles
vieram também vozes de mulheres que diziam repetidamente os dizeres do
medalhão:
“ Os pecados do
sangue serão pagos com sangue.”
“ Os pecados do
sangue serão pagos com sangue.”
“ Os pecados do
sangue serão pagos com sangue.”
“ Os pecados do
sangue serão pagos com sangue.”
- Que pecados
são esses?! – gritei com raiva – Quem pecou?!
Várias crianças assexuadas e com a
face costurada apareceram diante de mim, elas riam e minha amiga gritava. Eu
sentia vontade de chorar, mas, não conseguia. Eu sentia vontade de correr, mas,
não conseguia.
Olhei a minha volta e vi que as
paredes de meu apartamento estavam cobertas por uma membrana pulsante e
ensangüentada, eu vomitei, minha amiga gritou alucinadamente. A levantei do
chão puxando-a com força e corremos pelos corredores em direção ao quarto. Meu
coração quase parou quando olhei pela janela e em vez de ver os prédios da
cidade vi corpos mutilados e retorcidos tentando entrar.
Senti braços magros e fortes
abraçando-me, me deixando imobilizado. Nós dois gritávamos, enquanto eu
assistia me debatendo em vão, às crianças nefastas se aproximarem de minha
amiga que estava deitada em posição fetal no chão chorando e soluçando
compulsivamente. Os braços me apertavam com força, expulsando o ar de meus
pulmões. As crianças estavam sobre ela, rindo. O mundo a minha volta ficou
escuro.
Quando acordei, raios de sol
entravam pela janela do quarto e fustigavam meus olhos. As paredes estavam
normais, o mundo lá fora também, minhas costelas intactas. Procurei por minha
amiga por todo o apartamento e nada. Liguei para nossos amigos em comum,
ninguém a tinha visto.
Já estava achando que tinha sido um
sonho, quando vi no chão da sala o medalhão com os dragões em alto relevo. Mas,
agora não estavam devorando a cauda um do outro, e sim face a face. Com ele em
mãos tive certeza que não tinha sido um sonho.
E sejam lá quais eram os pecados
cobrados.
Eles foram pagos.